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Por Luiz Claudio Ferreira*

10 de dezembro de 1979. Foram necessários mais de 10 anos, desde a morte do líder revolucionário Carlos Marighella (assassinado em 4 de novembro de 1969 por agentes da ditadura em São Paulo), para que os restos mortais do ex-deputado fossem enterrados em Salvador, terra natal do comunista, na presença de centenas de pessoas. O corpo, antes sepultado como indigente no cemitério da Vila Formosa, foi transferido para o Cemitério Quinta dos Lázaros depois que Marighella recebeu a anistia política. 10 de dezembro é Dia universal de Direitos do Homem. Informações sobre o evento constam no centro de documentação da Fundação Getúlio Vargas (FGV), no Dossiê da Comissão da Verdade de SP e na biografia “Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo”, de Mário Magalhães.

Na ocasião, há exatos 40 anos, foi erguida uma lápide projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer com uma silhueta de Marighella, com marca de cinco tiros no peito, com o braço erguido e a frase “Não tive tempo para ter medo”, de autoria do antigo guerrilheiro. A lápide foi um presente do arquiteto à família de Marighella. Outra homenagem no enterro foi a leitura de um texto do amigo Jorge Amado. “Vens de um silêncio de 10 anos, de um tempo vazio, quando houve espaço apenas para a mentira e negação”, escreveu o autor conterrâneo.

“Chegas de longa caminhada a este teu chão natal, território de tua infância e adolescência”. Jorge Amado, no texto, identifica que aquele momento faria justiça diante dos apagamentos propositais do legado do revolucionário apontado por parte da sociedade e da mídia como “vilão”. “Trancaram as portas e as janelas para que ninguém percebesse tua sombra erguida, nem ouvisse tua voz, teu grito de protesto (…). Escreveram a história do avesso”.

O escritor entende que foram 10 anos “ferozes de calúnia e ódio” enquanto ele esteve sepultado como indigente. A homenagem com o enterro em Salvador, na “aurora da Bahia, trazido por mães de amor e amizade” seria, para Jorge Amado, um marco que refaria a imagem de Carlos Marighella. “Aqui estás e todos te reconhecem como foste e serás para sempre: incorruptível brasileiro, um moço baiano de riso jovial e coração ardente”, escreveu Amado. Ao final, o escritor destacou que a memória do guerrilheiro sobreviveria aos ataques. Aqui chegaste pela mão do povo. Mais vivo que nunca, Carlos”.

Além da homenagem de Jorge Amado, lida pelo amigo e ex-deputado também cassado Fernando Sant’Anna, foi feita uma oração fúnebre escrita pelo abade do mosteiro de São Bento em Salvador, dom Timóteo Anastácio.
Tombamento

Um projeto de Lei, que tramita desde 2014, prevê o tombamento da lápide em homenagem a Marighella. A vereadora Aladilce Souza, autora da proposta, explica que, além de ser a única obra de Niemeyer na Bahia, o tombamento vai proporcionar mais visibilidade e segurança para a obra em memória do líder revolucionário.

A parlamentar explica que o tombamento não é um processo fácil. Antes do tombamento, foi preciso apresentar memorial descritivo para o Conselho Municipal de Cultura. Apesar da demora, ela entende que o assunto tem contado com a atenção do município, e principalmente do Estado, por intermédio do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC) para que o assunto seja resolvido urgentemente. Outra medida, segundo a vereadora, é transformar a casa em que viveu Marighella em memorial.

Jorge Amado (primeiro à esquerda na fila de baixo) e Carlos Marighella (segundo da direita para a esquerdana fila de cima) integraram a bancada comunista na Constituinte de 1946.

Confira mensagem na íntegra escrita por Jorge Amado

“Chegas de longa caminhada a este teu chão natal, território de tua infância e adolescência.Vens de um silêncio de dez anos, de um tempo vazio, quando houve espaço e eco apenas para a mentira e a negação.Quando te vestiram de lama e sangue, quando pretenderam te marcar com o estigma da infâmia, quando pretenderam enterrar na maldição tua memória e teu nome.

Para que jamais se soubesse da verdade de tua gesta, da grandeza de tua saga, do humanismo que comandou tua vida e tua morte.

Trancaram as portas e as janelas para que ninguém percebesse tua sombra erguida, nem ouvisse tua voz, teu grito de protesto.

Para que não frutificasses, não pudesses ser alento e esperança.

Escreveram a história pelo avesso para que ninguém soubesse que eras pão e não erva daninha, que eras vozeiro de reivindicações e não pragas, que eras poeta do povo e não algoz.

Cobriram-te de infâmia para que tua presença se apagasse para sempre, nunca mais fosse lembrada, desfeita em lama.

Esquartejaram tua memória, salgaram teu nome em praça pública, foste proibido em teu país e entre os teus.

Dez anos inteiros, ferozes, de calúnia e ódio, na tentativa de extinguir tua verdade, para que ninguém pudesse te enxergar.

De nada adiantou tanta vileza, não passou de tentativa vã e malograda, pois aqui estás inteiro e límpido.

Atravessaste a interminável noite da mentira e do medo, da desrazão e da infâmia, e desembarcas na aurora da Bahia, trazido por mãos de amor e de amizade.

Aqui estás e todos te reconhecem como foste e serás para sempre: incorruptível brasileiro, um moço baiano de riso jovial e coração ardente.

Aqui estás entre teus amigos e entre os que são tua carne e teu sangue. Vieram te receber e conversar contigo, ouvir tua voz e sentir teu coração.

Tua luta foi contra a fome e a miséria, sonhavas com a fartura e a alegria, amavas a vida, o ser humano, a liberdade.

Aqui estás, plantado em teu chão e frutificarás. Não tiveste tempo para ter medo, venceste o tempo do medo e do desespero.

Antonio de Castro Alves, teu irmão de sonho, te adivinhou num verso: “era o porvir em frente do passado”.

Estás em tua casa, Carlos; tua memória restaurada, límpida e pura, feita de verdade e amor.

Aqui chegaste pela mão do povo. Mais vivo que nunca, Carlos”.

*Luiz Cláudio Ferreira é jornalista, doutorando em literatura e pesquisador em biografias sobre Marighella, sob orientação do professor Sidney Barbosa

Publicado originalmente no Vermelho